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ARTIGO: Regulação urbana e espontaneidade das cidades

Por Gisele Borges
O que te vem à mente quando você pensa em cidades? Prédios? Congestionamento, barulho, ruas e avenidas? Eu penso em pessoas!
A cidade existe porque é escolhida por milhões como lugar para viver, trabalhar e se conectar. O vai e vem de gente dá ritmo ao dia, enche os espaços de histórias e transforma ruas em cenários de encontros.
Eu acredito que espaços públicos vivos e agradáveis são fundamentais para se ter uma boa cidade. É nesse espaço que a vida acontece, que um olhar vira um bom dia, um bom dia vira um aceno, um sorriso, um abraço.
O que faz com que alguns lugares sejam bem sucedidos e nos atraiam e outros em oposição nos repele? Seria o verde, a curiosidade, bancos confortáveis para uma pausa? Um balanço, sombra?
O sucesso do Paley Park, em Nova York, nos dá pistas sobre isso. Criado em 1967, seu impacto não vem do tamanho, mas da sensação de refúgio que oferece. Robert Zion, o paisagista responsável pelo projeto, soube combinar simplicidade e inteligência: cadeiras leves e móveis, uma parede de água que abafa o ruído da cidade e árvores que garantem sombra. O espaço mostra como pequenos gestos de planejamento urbano podem transformar a experiência da cidade. Uma solução simples, mas que não existe sem um esforço gigantesco.

Os pocket parks (ou parques de bolso) surgiram nos Estados Unidos nos anos 60, como resposta ao crescimento urbano e à falta de áreas verdes. Pequenos espaços, muitas vezes esquecidos, foram transformados em verdadeiros respiros dentro da cidade, com uma identidade tão forte, que ao longo do tempo foram capazes de ser o próprio endereço do local, sem necessidade de mencionar nome de rua.
Em um caminho contrário, nossas cidades deixaram de contar nossa história, nossa cultura, nossos valores e sabores. Gradativamente as cidades perderam identidade e se tornaram genéricas, pouco imaginativas. As leis que foram criadas para organizar o uso e ocupação do solo e garantir a qualidade dos espaços públicos, passaram a regular os lotes privados e cercear a inovação.
Excesso de regras pode desestimular o empreendedorismo e a criatividade. Em um cenário altamente regulado, o caminho mais seguro é seguir o que já foi feito, evitando riscos – e, com isso, perdemos a chance de experimentar novas soluções urbanas.
Os afastamentos obrigatórios são um exemplo disso. Eles surgiram em Nova York, em 1916, para garantir ventilação e iluminação nas ruas, evitando a formação de “cânions urbanos”. No Brasil, essa prática ganhou força com os planos diretores da década de 40 e foi consolidada pelo Estatuto da Cidade em 2001. Mas, passadas tantas décadas, já conseguimos ver os impactos dessas regras. Os afastamentos criaram vazios urbanos, afastaram as construções da calçada e transformaram ruas em corredores frios e sem vida.
Recentemente, analisei um terreno em Belo Horizonte, numa esquina de grande potencial. A maioria dos prédios ao redor foi construída diretamente na divisa, sem afastamentos, mantendo a lógica urbana de ocupação do solo. No entanto, pelas regras atuais, esse terreno de 600m² perderia grande parte de sua área para afastamentos frontais e exigências de permeabilidade. No fim, sobrariam menos da metade da metragem inicial para construção, 296m².
Curiosamente, o Paley Park, um exemplo de um bom espaço público, tem 390m². No nosso caso, 304m² seriam subtraídos sem necessariamente criar algo de valor para a cidade. A diferença entre uma regulação inteligente e uma regra arbitrária está justamente na capacidade de gerar bons espaços urbanos ao invés de apenas impor restrições.
Eu poderia discorrer sobre os impactos financeiros nesse terreno e no custo das unidades, mas isso é pauta para outro artigo.
Minha reflexão é simples: cidades evoluem, e as escolhas das pessoas também. Se queremos ambientes urbanos mais vivos e interessantes, é essencial que a regulamentação acompanhe essa evolução, permitindo que a iniciativa privada inove e crie espaços que façam sentido para as necessidades de hoje.
Se continuarmos tratando o espaço urbano como um quebra-cabeça técnico, ignorando o imprevisível, o espontâneo e o humano, talvez as cidades do futuro sejam intramuros.

Gisele Borges é arquiteta e urbanista, sócia-fundadora da Gisele Borges Arquitetura. Tem pós-graduação em Gerenciamento de Projetos pelo IETEC – Instituto de Educação Tecnológica e Gestão de Pessoas, pela Fundação Dom Cabral.

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