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ADIT Entrevista: Robert Davis
O criador do icônico empreendimento Seaside, na Flórida, diz que o segredo do projeto que marcou o urbanismo mundial foi usar o tempo como aliado
Ele mergulhou no passado em busca da atmosfera calorosa e da qualidade de vida das antigas cidades no sul dos Estados Unidos – e se tornou, paradoxalmente, conhecido no mundo como pai do “novo urbanismo”.
Aos 72 anos, Robert Davis e seu empreendimento icônico, o Seaside, na Flórida, fundado há mais de 35 anos, continuam esbanjando vitalidade como referências de sucesso quando o assunto é comunidade planejada.
Ao herdar nos anos 1970 um terreno de mais de 32 hectares na costa da Flórida e decidir criar uma comunidade com ajuda de jovens arquitetos (que hoje são destaques internacionais em planejamento), Davis nadou contra a maré do modelo de subúrbio voltado para o automóvel.
O resultado foi um condomínio com mais de 300 casas e um centro vibrante de lojas, pequenos mercados, restaurantes, teatro, escola, enfim, uma pequena cidade voltada para o pedestre e a vida em comunidade.
Das primeiras viagens em busca de inspiração nos anos 1970 por cidades no sul dos EUA em seu Pontiac vermelho até a fama mundial, no cinema, quando Seaside foi cenário do filme “O Show de Truman’’ (que antecipou a febre por reality shows, estrelado por Jim Carrey), Robert Davis conta abaixo aos leitores da Panorama ADIT sobre como a paciência e o tempo são aliados na maturação de um projeto que influenciaria anos depois centenas de outras comunidades planejadas no mundo inteiro.
Quando você iniciou o projeto de Seaside no final dos anos 70, ninguém usava ainda a expressão “novo urbanismo”. Você costuma dizer, contudo que já tinha consciência do modelo que queria seguir. De onde vieram as principais referências para Seaside?
Na verdade, tínhamos consciência de que queríamos fazer algo diferente e que, caso fôssemos bem sucedidos, aquilo poderia virar uma tendência, um movimento. Na época, estudávamos cidades de um tempo em que os automóveis ainda não eram o meio de transporte dominante, em que as pessoas andavam pelas ruas para fazer compras e conversar com os vizinhos. E isso, claro, não era chamado de novo urbanismo. Mas, com o tempo, ficamos muito orgulhosos, sim, ao constatar que Seaside se tornou uma inspiração para projetos no mundo inteiro que buscam resgatar essa experiência de viver, de fato, em uma comunidade.
Mas quais foram as referências concretas para o traçado da cidade?
Na verdade, saímos pesquisando e fazendo um inventário de referências de vários locais e estilos, seja de algum detalhe na arquitetura de uma cidade da Carolina do Sul, seja de uma inovação em Miami Beach ou mesmo no traçado radial de cidades como Paris, Versailles e Washington. Enfim, costumo dizer que uma das vantagens de Seaside foi o tempo que levamos para desenvolver o projeto, de forma gradual, o que nos permitiu ir corrigindo e incorporando referências durante o processo. Tudo, claro, tendo em mente a criação de uma experiência de vida que liberasse as pessoas da suposta segurança de suas casas e automóveis para voltarem a ser pedestres e viver em comunidade.
Como você teve seu primeiro contato com arquitetos como Andrés Duany, que hoje é um dos nomes de destaque no mundo em planejamento urbano e, na época, ainda era um jovem arquiteto?
Fomos apresentados por Susan Lewin que, na época, era editora da revista House Beautiful e acompanhava uma sessão de fotos. Duahny, ao lado de outros arquitetos (como Elizabeth Plater-Zyberk) compartilhavam o mesmo interesse em criar comunidades e desenvolver projetos de revitalização de cidades. Cidades desenhadas para que você pudesse ter acesso à maioria dos lugares sem precisar entrar em um automóvel. Não se tratava apenas de vender casas, mas de vender a ideia de da vida em comunidade.
No livro Suburban Nation (Nação Suburbana), Duany e os co-autores afirmam que você faz parte de uma geração de desenvolvedores imobiliários motivados primeiramente pelo desejo de criar um melhor lugar para viver – e somente em segundo plano pelo lucro. Como o seu lado de homem de negócios reage ao seu lado criador de comunidades?
Desde cedo, descobri que queria fazer algo diferente e acredito que, se você mantiver o foco em boas ideias, o dinheiro em geral vai terminar seguindo suas ideias. Claro que, no início do projeto, não sabíamos se ele seria bem sucedido e atuamos para minimizar os riscos. E, como tinha aversão à dependência de dívidas com bancos por experiência em projetos anteriores, desenhamos Seaside pensando sempre em intervenções de baixo custo. Acredito que essa busca por soluções simples, originais, foi essencial para que pudéssemos crescer da maneira certa, gradual, sem pressão de retorno a curto prazo que nos desviasse do conceito original.
Você herdou as terras de Seaside do seu avô, o que provavelmente lhe deu mais poder e tempo para implementar suas ideias. Você acredita que esse modelo poderia ser seguido por uma desenvolvedora de projetos imobiliários tradicionais?
Sim, desde que o empreendedor não tenha que se endividar ou desembolsar do próprio bolso um alto valor pelo terreno e conte com parcerias e modelos alternativos para desenvolver o projeto de forma gradual. O investimento imobiliário é de longa duração. Somente em anos recentes houve essa tentativa de torná-lo um investimento de curto prazo e o resultado é bem conhecido. O sucesso de um projeto como o nosso é proporcional à capacidade do empreendedor em criar valor no longo prazo. É preciso tempo e paciência para controlar a evolução do projeto e assegurar sua valorização constante.
Ainda no início do projeto, os lotes e casas em Seaside eram considerados mais caros do que os de outros empreendimentos da região, inclusive alguns deles com mais lotes disponíveis de frente ao mar. Isso já fazia parte da estratégia de valorização?
Sim, os primeiros lotes custavam mais do que outras opções existentes na região e, de fato, isso fez com que as vendas iniciais fossem lentas. Mas, mesmo depois de alguns anos, quando as vendas começaram a decolar, tomamos a decisão de crescer lentamente, tanto para garantir um cuidado maior sobre o que estava sendo construído como para garantir que a demanda por nossos lotes permanecessem acima da oferta, garantindo uma valorização ao longo dos anos. Em um projeto desse tipo, a paciência é um aliado na criação de valor. Uma valorização sólida que possa, inclusive, resistir aos períodos de baixa na economia. Com o tempo, o resultado geral foi bem maior do que se precisássemos, por exemplo, vender um grande número de lotes logo no início do projeto por pressões financeiras de curto prazo.
Um dos diferenciais de Seaside foi a reserva antecipada de áreas para prédios públicos, escolas, centros comerciais. Na sua visão, qual dessas intervenções foi mais importante para a comunidade?
É possível atrair pessoas e imprimir o conceito de um empreendimento por meio de intervenções simples. O deque na praia em Seaside, por exemplo, é um bom exemplo. Além disso, o mercado de legumes frescos e camarões comandado por Daryl (esposa de Davis), conhecido mais tarde como Seaside Saturday Market, foi essencial para atrair pessoas e se tornar um ponto de encontro e conexão. Diferentemente do que muitos pensam, mudanças essenciais não se dão necessariamente pela construção de grandes estruturas físicas. A primeira mercearia em Seaside, por exemplo, teve um impacto imenso na comunidade ao criar um ambiente caloroso de encontro entre vizinhos para bater um bom papo, tomar um café e relaxar longe da televisão. Muito mais importante do que uma grande intervenção física é o cuidado para manter o foco na criação de uma experiência em que você possa desacelerar e reconectar-se com a natureza. Em Seaside, desde o início valorizamos, por exemplo, a vegetação local valorizando os arbustos e plantas nativas que cresciam ao redor.
É verdade que vocês sequer usaram gramados no paisagismo para favorecer a fauna nativa?
Confesso que, além de favorecer as plantas nativas, nunca tive muita paciência para cortar grama. Com exceção das áreas em frente à Escola e do Anfiteatro (que também serve de lago de retenção em caso de furacões), não usamos gramados em nenhum outro lugar.
Você disse que ficou surpreso com a velocidade do processo de gentrificação em Seaside (valorização de uma região que termina afastando primeiros moradores e trabalhadores pelos preços proibitivos). Como equilibrar a valorização sem perder a identidade do projeto espelhado em comunidades pequenas?
Sim, esse processo se deu de forma mais rápida do que esperávamos, mas é possível amenizar seus efeitos por meio da criação de incentivos para garantir a presença de trabalhadores, pequenos empreendedores, artistas, comerciantes, enfim, diferentes perfis que enriquecem a vida em comunidade. Além disso, segundo uma pesquisa que realizamos, 67% das residências são disponibilizadas para aluguel por uma ou mais semanas no ano. E isso termina atraindo um fluxo de pessoas de diversas regiões e classes sociais que tem a oportunidade de conviver e compartilhar experiências comuns.
Olhando em retrospectiva, qual foi o impacto para a imagem de Seaside após ser escolhido como cenário do filme O Show de Truman, com Jim Carrey, já que o filme de 1998 (que antecipou a tendência de reality shows) se passava em uma comunidade artificial, tudo o que você lutava para que Seaside não fosse?
Sem dúvida, o impacto foi tremendo. Não apenas após a estreia do filme pela atração de turistas que queriam conhecer o local onde ele havia sido realizado (Seaside é chamado de Seahaven no filme), como pela invasão ainda durante as filmagens de um verdadeiro exército de produtores e artistas na comunidade (o comediante Jim Carrey chegou a alugar uma casa em frente à praia próxima da locação). Os cenários criados para o filme, que reforçavam a atmosfera artificial do roteiro que antecipou a febre dos reality shows, serviram, sim, de munição para os arquitetos críticos de Seaside. A maioria deles, contudo, nunca sequer havia pisado lá. Olhando em retrospectiva, contudo, acho que faria tudo de novo. Não apenas pela contrapartida em recursos para obras de melhoria em Seaside, como pela chance de conviver com o grupo de pessoas interessantíssimas. Gostaria, inclusive, de ter passado mais tempo no set de filmagens.
Que projetos em Seaside você está à frente hoje?
Um deles, muito importante para mim, até por interesse próprio, é o Aging With Grace (Envelhecer com graça), que tem o propósito de fazer adaptações em Seaside que garantam assistência para que as pessoas da minha geração possam envelhecer com conforto, qualidade de vida e, o mais importante, não serem obrigadas a mudar para uma casa de assistência à saúde de idosos (nos Estados Unidos, o chamado “assisted living facility”) o que, para mim, parece quase uma prisão. A ideia é contar em Seaside com essa assistência por meio de uma série de programas específicos de cuidados médicos, controle de medicação, além de promoção de atividades físicas, dietas, sessões de meditação, enfim, todo o suporte físico e espiritual em um ambiente que não apenas prolongue o tempo de vida, mas a qualidade dela com sabedoria. Além disso, me preocupo com a mobilidade, já que chegará um momento em que precisarei parar de dirigir e não quero que isso me impeça de sair por aí. Nossa ideia é implantar um sistema de transporte viável que permita que as pessoas possam se deslocar na região sem usar o automóvel usando alternativas por meio de carros elétricos, enfim, fazer até mesmo com que os visitantes que venham a Seaside decidam estacionar o carro em outros pontos e usem meios alternativos de transporte como carros elétricos, bicicletas comunitárias, enfim, não tenham que usar seus próprios automóveis.
Quando você se encontra com jovens empreendedores que querem desenvolver projetos inspirados em Seaside, que conselho você costuma dar a eles?
Quando me encontro com jovens estudantes em palestras, o que procuro enfatizar é a importância de se envolverem não apenas em projetos, mas a se comprometerem com um lugar. Acho que tive a satisfação em minha carreira de perceber cedo a importância de me conectar a um projeto de longa duração em uma região, o que acho que faz toda a diferença. E isso vale para projetos em Curitiba, como os de Jaime Lerner, ou na bela cidade do Rio de Janeiro, onde estive há alguns meses e fiquei encantado. É claro que a cidade carioca tem muitos problemas, incluindo os de tráfego, mas acredito que esses desafios podem ser superados com tecnologia nos próximos anos. Acho que o mais importante para ajudar a tornar uma pequena ou grande cidade em um grande lugar para viver é exatamente esse foco no longo prazo, em vez de simplesmente saltar superficialmente de um projeto para outro.
Por Rodrigo Cavalcante – 5ª edição da Revista Panorama ADIT
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