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Pessoas como elemento principal no desenvolvimento urbano
O crescimento das cidades nem sempre levaram em consideração as necessidades dos seus organismos vivos e obedeceram muito mais a lógica de priorizar o deslocamento de carros do que de pessoas. Os resultados de tudo isso são óbvios: falta de mobilidade, poluição, insegurança, déficit habitacional, e uma infinidade de outros problemas na vida urbana.
Quebrar com essa realidade tem sido um desafio de vários arquitetos e urbanistas em todo o mundo. Um dos maiores críticos da arquitetura modernista, o arquiteto Dinamarquês, Jah Gehl, autor de “Cidades para Pessoas”, livro que virou um método para muitos profissionais, parte do princípio que os espaços urbanos devem levar em conta a escala humana e a interação com a vida.
Com as ideias do dinamarquês, o escritório Gehl Arqchitects tornou-se referência mundial no desenvolvimento de projetos urbanos, onde as pessoas estão no centro das discussões. Para conhecer um pouco mais sobre a atuação, metodologia e projetos desenvolvidos em todo o mundo pela equipe do escritório, a ADIT Brasil conversou com o arquiteto brasileiro, Maurício Duarte, que atua no Gehl há quatro anos, majoritariamente no desenvolvimento de comunidades planejadas.
Com ampla experiência no desenvolvimento de novos bairros, o arquiteto brasileiro é um dos Keynote Speakers confirmados para a 8ª edição do mais importante Seminário sobre Comunidades Planejadas, Loteamentos e Desenvolvimento Urbano do Brasil, o Complan. Na entrevista, Duarte fala sobre o método Gehl, bairros planejados, mobilidade urbana, projetos e desafios no crescimento inteligente das cidades brasileiras.
Apresentando um pouco das ideias de vanguarda do Gehl Arqchitects, Maurício aborda o futuro das cidades e como pensar em ambientes que promovam maior qualidade de vida é essencial para a economia de um lugar: “Cidades com maior qualidade de vida são capazes de atrair e reter talentos e profissionais mais qualificados, capazes de oferecer maior oportunidade para inovação, criatividade e novos negócios”, opina o arquiteto. Confira a entrevista na íntegra:
Para iniciarmos, gostaria que você se apresentasse e contasse sua trajetória profissional e atuação no Gehl:
Em 2010 comecei a trabalhar com planejamento urbano e desde então venho atuando praticamente no desenvolvimento de novos bairros, geralmente comunidades planejadas, mas algumas vezes em projetos estratégicos. Nesse meio de tempo, percebi que não seria possível continuar trabalhando com planejamento urbano através de uma empresa brasileira, foi quando coloquei na cabeça que teria ter uma experiência internacional. Em 2007, fui estudar em Berlim, depois fui para Amsterdã, voltei para São Paulo, trabalhando em uma empresa americana, no projeto da Nova Luz. Trabalhei nessa empresa por quase quatro anos, então me levaram para São Francisco para entender como a empresa funciona lá, voltei para São Paulo, montei uma equipe em São Paulo, depois fui para Recife, montei um escritório satélite para dar apoio aos nossos projetos no Nordeste. Depois fui buscar um trabalho na mesma empresa em São Francisco que trabalhava antes, depois acabei conhecendo o pessoal do Gehl e eles me ofereceram trabalho.
Estou aqui há quase quatro anos, tem sido uma experiência bastante interessante. No Gehl, o escritório existe há 18 anos e mais 25 anos de pesquisa acadêmica, sempre tentando definir recomendações e método de análise para entender quais são as qualidades e elementos da vida urbana que fazem com que as cidades aconteçam de uma maneira mais ativa e agradável, promovendo maior qualidade de vida. Quando entrei na empresa, eles estavam consolidando uma equipe de comunidades planejadas e tem sido uma jornada bastante interessante, dentro desse contexto do escritório, desenvolver e consolidar uma nova vertente de trabalho, que antes era muito mais de consultoria, e agora tá se tornando a nossa maior quantidade, que está sendo comunidades planejadas.
Você falou da sua atuação em projetos de comunidades planejadas no Gehl e o posicionamento de vocês é muito claro: fazer cidades para pessoas. Porque isso é tão importante no urbanismo?
É uma abordagem de projeto e também uma filosofia de vida. Os arquitetos no geral têm muitas teorias e pensam sobre filósofos, sobre questões de certa maneira um tanto abstratas e a ideia de “fazer cidades para pessoas” consiste em focar em um objetivo maior, pensar em quem vão usar as cidades e fazem elas acontecerem, que são as pessoas, não são os dogmas estéticos da arquitetura, não são os dogmas de urbanismo.
Dentro desse arcabouço conceitual de “fazer cidades para pessoas”, a gente busca oferecer qualidades, que promovam uma vida mais saudável, um alto nível de interação social, mobilidade, buscando alternativas ao uso do carro, por uma questão de espaço e forma do lugar. O nosso objetivo é criar lugares que sejam agradáveis, que tenha pouco ruído, baseada em uma rede de espaços públicos, onde as pessoas possam andar na rua, fazer exercícios ao ar livre. Uma cidade que o espaço público seja como uma plataforma, para que as pessoas possam sair na rua, que não só por questão de bem estar social e individual, mas também que isso oferece maior segurança, pois a partir do momento que tem mais pessoas andando na rua, os níveis de criminalidade são mais baixos.
Nesse sentido, não só do ponto de vista qualitativo, mas também fica claro que isso tem uma influência direta no valor da propriedade e na dinâmica econômica da cidade, ou seja, cidades com maior qualidade de vida são capazes de atrair e reter talentos, atrair e reter profissionais mais qualificados, capazes de oferecer maior oportunidade para inovação, criatividade e novos negócios. Hoje em dia em uma economia global, onde você pode estabelecer uma empresa basicamente em qualquer lugar do mundo, essas cidades com uma melhor qualidade de vida, tonam-se centros de inovação, lugares de novas empresas. Fora isso toda economia que gira em torno de pedestres/bicicletas é uma coisa que hoje em dia já é absolutamente confirmada.
Em quais projetos mais gostou de trabalhar ou mais desafiadores?
Atualmente, 90% do meu trabalho é com comunidades planejadas. Comecei no Gehl fazendo alguns projetos no Brasil, acho que o projeto mais legal que aconteceu foi o projeto em Natal, que chama Harmonia, com o pessoal da Ecocil, foi uma colaboração super legal, conseguiram recentemente a primeira aprovação dos órgãos ambientais. No Panamá, trabalhei no projeto de uma comunidade no meio do país para trabalhadores que são relocadas para trabalhar em um nova mina. Na Europa, participei de projetos em várias escalas, sendo um deles em Estocolmo, que é uma área relativamente pequena (sete hectares), comparativamente com esses projetos do Brasil (300 hectares), no Panamá (165 hectares), então o desafio era de entender como funciona a mentalidade de trabalho na escandinava, qualidades, suas regulamentações… Outro projeto que atuei foi na conversão de um aeroporto em um bairro novo ao redor de Bristol. Agora, estou trabalhando no desenvolvimento de um pequeno bairro na Noruega, além de estar fazendo alguns projetos de desenhos de espaços públicos em Lion na França.
“Dentro desse arcabouço conceitual de “fazer cidades para pessoas”, a gente busca oferecer qualidades, que promovam uma vida mais saudável, um alto nível de interação social, mobilidade, buscando alternativas ao uso do carro, por uma questão de espaço e forma do lugar”
Vimos que sua atuação é em parte no desenvolvimento de projetos de planejamento e desenho urbano, principalmente na América Latina. No caso do Brasil, em específico, é possível definir quais os principais desafios no desenvolvimento urbano das principais cidades do país?
Vejo do ponto de vista institucional, o código de obra, ou as diretrizes urbanísticas são calcadas em um modelo de urbanismo modernista, e o Brasil não saiu desse modelo, que cria cidades inseguras, orientadas para carros, cidades que não oferecem necessariamente uma qualidade de vida, não oferecem calçadas, não oferecem um ambiente urbano ativo. Acho que isso é um dos grandes problemas. Outro entrave é a Lei das APPs, que o intuito é bom de preservar as beiras de rios, mas por você não poder fazer nenhuma ocupação, por ter uma limitação muito grande, faz com que esses espaços por não serem ocupados sejam degenerados e inseguros, acabam transformando-se em depósitos de lixos, por exemplo. O objetivo dela faz um desserviço para a proteção ambiental e para o sentido de utilidade pública do espaço. A gente sempre fala aqui no escritório que a gente trabalha com hardware, que são os elementos das cidades, e com o “software”, que são os processos que levam ao desenvolvimento de projetos. Esses dois pontos que mencionei anteriormente seriam de hardware.
E de software o que podemos mencionar?
O Brasil não tem ainda, infelizmente, uma cultura de colaboração e de respeito e confiança entre um e outro, acho que isso é um ponto que a gente pode olhar em qualquer fatia da nossa economia, qualquer fatia de atividade, essa é a questão de você confiar no seu consultor, de ter uma relação onde você entende quais são os limites. Ás vezes a gente é contratado, mas não tem uma confiança, ou a gente é contratado por uma questão de marca… O desafio sempre é fazer com que as pessoas ouçam umas as outras, não seja só o chefe que tenha todas as ideias, que a equipe que está por baixo seja só a produção. Aqui no Gehl você tem desde estagiários e arquitetos iniciantes que são ouvidos de igual para igual. Essa hierarquia é uma coisa difícil e contraproducente.
Sem falar na burocracia que tem um custo muito grande, é mais barato você confiar na pessoa e fazer um contrato de três páginas, onde estabeleçam os princípios básicos para colaboração saudável e favorável do que você fazer um contrato onde estabeleça uma cláusula de tudo que pode dar errado. Isso faz com que as pessoas fiquem tentando buscar brechas no contrato para tirar vantagem. Isso do respeito colaborativo do trabalho vai em diversas escalas: ao trabalho desenvolvido por outro prefeito com recurso público, a gente vê projetos que não continuam, arquitetos não respeitando o trabalho feito anteriormente, ou do cliente não valorizar as horas que foram depositadas no projeto ou aberto para buscar novas soluções.
Isso chega no quarto ponto que seria que o Brasil tem uma mentalidade insular, apesar de ser gigante, estamos sempre reproduzindo os mesmos conceitos e mesmas fórmulas, mesmo que elas não sejam as mais adequadas para um crescimento a longo prazo. A gente vê uma resistência de “isso funciona em outro canto, mas aqui não funciona no Brasil”.
Não acontece só no Brasil, a ideia de repetição das mesmas receitas e não vê como as nossas cidades estão se tornando segregadas, perdendo qualidade. O modelo de cidade reflete também nesse momento político que a gente vê hoje, em que as pessoas estão distanciadas e polarizadas, discutindo e não se encontram, então a diversidade está se perdendo, e o papel do espaço público, onde você tem pessoas de diferentes classes, diferentes contextos, diferentes etnias, é que elas se encontram e esse encontro casual faz com que esse medo e essa barreira social e distanciamento do outro seja reduzida.
Diante disso, como você percebe que a organização social do nosso país interfere na ocupação do ambiente urbano?
Tenho aprendido muito com o que eles chamam aqui de mentalidade viking, que falam que todo mundo reme no mesmo barco e não importa qual que seja a sua posição, acho que isso é uma lição que é interessante. No Brasil, você tem pessoas de diferentes áreas do mundo buscando sempre prevalecer sua própria agenda e objetivos. O que falta no Brasil é esse entendimento da esfera pública, do benefício comum e que isso só é possível a partir do momento que você tem todos esses diferentes grupos sendo capazes de colaborar e não brigando para vê quem terá os interesses atendidos, sejam eles ruralistas, de direta ou esquerda.
A sociedade é um organismo que se beneficia da cooperação, mas no Brasil temos essa sensação de separação. Não sei dizer se essa lógica de separação é um reflexo da cidade, mas sei que o modernismo é a base de como a maioria das cidades são regulamentas no Brasil e ele faz também uma segregação de usos. Brasília é um exemplo exponencial disso, onde você tem a quadra das farmácias, a quadra de hotéis, quadra dos ricos, quadra dos pobres… É mais ou menos isso, o efeito primeiro da mentalidade dos diferentes grupos que nos colonizaram, tentando cada um pegar a maior quantidade de riqueza que fosse possível, aí a forma das cidades perpetuando essa dinâmica humana, social, política e econômica.
“Não sei dizer se essa lógica de separação é um reflexo da cidade, mas sei que o modernismo é a base de como a maioria das cidades são regulamentas no Brasil e ele faz também uma segregação de usos”
A mobilidade urbana nas metrópoles é um grande problema por aqui, dois exemplos claros disso são cidades como Recife e São Paulo. Vi que vocês desenvolveram projetos que visam melhorar a forma de locomoção em metrópoles na Europa, seja pelas ciclovias ou transporte público. Como é possível fazer isso nas metrópoles na América latina?
Acho que o sucesso do transporte público está relacionado, principalmente, às instituições fortes, ou seja, você tem um prefeitura, você tem um governo, e um organismo governamental trabalhando talvez na escala da metrópole conurbadas para definir e implementar essas políticas de transporte público. Vejo muitas vezes, você tem empresas de ônibus fazendo competição, não tem um sistema unificado entre as diferentes modalidades de transporte. No Brasil a gente tem um herança que veio lá do JK com esse ‘”amor ao automóvel”, então as pessoas julgam que nem é possível ter uma outra solução, seja porque o transporte público é estigmatizado por ser de má qualidade ou algo de pessoas pobres, ou por ser uma bicicleta utilizada por poucos e entendida como marginalizada.
Além disso, as cidades brasileiras são muito grandes, então é difícil você fazer com que as pessoas andem de bicicletas mais de 5 km em qualquer lugar do mundo. Tem também a vontade política e a mentalidade de você enxergar além do que está posto no momento e isso acontece em qualquer lugar do mundo. Nos anos 60, quando foram abrir a primeira rua de pedestre aqui em Copenhague, aí os donos das lojas reclamaram, e hoje em dia virou parte da nossa cultura. Isso é uma coisa interessante porque a cultura de um país nunca é uma coisa cristalizada, é sempre um elemento em mutação. Falta a coragem de testar e cair de cabeça, tomar como prioridade.
Entrando agora um pouco no seu tema do Complan… Como você avalia as qualidades de um bairro planejado?
Um bairro planejado ideal é um bairro que tem como âncora o espaço público. Uma rede de espaço público levando em conta não só parques e praças, mas também ruas de qualidade com calçada, que tenha uma ambiência agradável. Se você falar com qualquer empreendedor imobiliário ele vai querer ter a maior flexibilidade possível para mudar usos e tipologia ao longo dos anos porque bairros planejados demoram de 5 a 50 anos para serem consolidados. A partir do momento que você tem um bairro planejado onde o elemento marcante seja o espaço público, qualquer que for o uso vai ser sempre um lugar agradável e funcional. É possível criar um bairro de qualidade com bom espaço público e arquitetura ruim, mas não pode criar o inverso. Falando em qualidades são aquelas agradáveis aos sentidos: olfato, visão e audição. Que não seja um lugar muito barulhento, que tenha muita fumaça, mas sim que seja um lugar com bastante verde, que tenha fragrância, com pessoas nas calçadas e que tenha uma escala agradável, ou seja, não sejam espaços abertos grandes, porque nestes as pessoas não se sentem seguras. Além disso, é importante que possua uma variedade de tipologias habitacionais, variedade de usos comerciais e não comerciais. E, acima de tudo, que tenha uma identidade. Você escolhe um bairro porque se identifica com a identidade daquele bairro. Vejo muitas comunidades planejadas crescendo como uma compilação de edifícios e pronto.
No Brasil, como você percebe o desenvolvimento das cidades planejadas?
No Brasil temos muita inteligência, muito talento e não falta oportunidade. Temos arquitetos maravilhosos e uma natureza que permite criar espaços públicos com qualidade infinitamente maior que muitos lugares na Europa. Existem lugares capazes de fazer isso, mas acontecem organicamente, quando os bairros planejados na maioria das vezes têm um caráter muito estéril.
“Você escolhe um bairro porque se identifica com a identidade daquele bairro. Vejo muitas comunidades planejadas crescendo como uma compilação de edifícios e pronto”
Falando agora um pouco de novas tecnologias urbanas. Quais inovações mais relevantes vêm impactando positivamente as cidades?
O principal são os dados. Ter dados que dão o embasamento para você tomar a decisão de projeto, de big data, de ter acesso diferentes níveis de informação são coisas interessantes. Softwares de informação de vento e temperatura são coisas interessantes. Tenho uma crítica muito grande ao movimento de smart cities porque acredito que a qualidade que oferece é duvidosa, acaba se tornando uma questão de vender um monte de aparato tecnológico que não proporciona valor agregado de verdade para os usuários. A tecnologia mais fundamental é a de telecomunicações, ou seja, poder falar no telefone, conversar sobre um projeto por Skype, desenvolver redes de comunicação de colaboração que antes nunca foram possíveis. Acredito que isso é a maior tecnologia que nos proporciona criar bairros planejados melhores.
O que podemos esperar da sua palestra no Complan?
Eu espero dar uma boa sacudida nos empreendedores imobiliários para verem outras maneiras de pensarem cidades planejadas e bairros planejados, pensando em lugares com maior variedade, diversidade de tipologias de habitação. Trazer um pouco essa experiência que eu venho tendo na Europa e no mundo todo, e como topicalizar essa experiência para desenvolvermos projetos no Brasil. Gostaria de focar mais no processo de desenvolvimento de um projeto do que no resultado final. Acredito que essa é a inovação de verdade, o processo e não o produto.
Mauricio Duarte Pereira é arquiteto associado do Gehl: Making Cities for People e do Conselho de Arquitetura do Brasil (CAU/BR). Com experiência em desenvolvimentos privativos e gestão de fundos ativos, trabalha desde 2010 na construção de masterplans e projetos de design urbano tanto na Europa quanto na America. Formado em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, com complemento de Estratégia Urbana pela UDK em Berlin, “Empretec” pelo SEBRAE, Desenvolvimento Estratégico pela FGV-RJ e participação do treinamento “Founders of Tomorrow” para explorar inovações guiadas por propósito e tecnologias em potencial, em Copenhague.