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Breve histórico e principais impactos da nova regulamentação dos condo-hotéis
Artigo analisa a Instrução CVM 602, que estabelece nova regulamentação para as ofertas públicas de distribuição de contratos de investimento coletivo hoteleiro (CIC hoteleiro). A norma substitui as regras estabelecidas na Deliberação CVM 734
por Marcelo Terra, Guilherme Caffaro Terra e Helena Mendonça de Toledo Arruda
Em meados de 2010, o setor hoteleiro brasileiro passou a sentir, de forma constante e gradual, aumento na demanda e vacância reduzida das ocupações dos quartos de hotéis. Tal demanda aparentemente crescente, aliada às Olimpíadas e Copa do Mundo que estavam por vir, fez com que as operadoras hoteleiras e as incorporadoras voltassem a se interessar na exploração do setor, renovando um pujante mercado que surgira no final dos anos 1970 e início dos anos 1980.
Sem medo de errar, afirmamos que os flats dessa época simbolizaram a retomada do mercado imobiliário, especialmente o paulistano, após a gravíssima crise de 1980 a 1983.
Tal fato resultou na busca de novas alternativas para financiamento da construção de empreendimentos hoteleiros, que se concretizou através da captação junto a investidores (em sua maioria, pessoas físicas), que desembolsavam recursos com a expectativa de rentabilidade baseada no resultado esperado da operação hoteleira.
Os referidos investimentos eram realizados em diversas estruturas, inclusive mediante a venda de cotas de sociedades de propósito específico (SPE) e de sociedades em conta de participação (SCP)[1] ou, ainda, através da venda de contratos de venda e compra de imóveis. Tais vendas eram divulgadas aos potenciais investidores através da distribuição de panfletos e mediante anúncios em rádio, revistas e jornais, sendo que, nesta época, o mercado imobiliário não tinha sua atenção voltada para a possibilidade de esta negociação ser entendida como investimento coletivo hoteleiro, popularizados como condo-hotéis (“CIC hoteleiros”).
O entendimento corrente e natural era o da realização de vendas imobiliárias puras.
Ao final do ano de 2013, a Comissão de Valores Mobiliários – CVM (“CVM”) emitiu um alerta ao mercado sobre a realização, especialmente por incorporadores e corretores de imóveis, de ofertas públicas de oportunidades de investimento em empreendimentos imobiliários, sem o devido registro e cautelas exigidas pela regulamentação. A partir daí, passou a entender que as vendas até então realizadas poderiam configurar uma oferta irregular de contratos de investimento coletivo, iniciando, consequentemente, a fiscalização do mercado imobiliário nesse sentido.
A CVM entendeu, assertivamente, que estavam sendo realizadas ofertas públicas de valores mobiliários, e que os CIC hoteleiros, quando ofertados publicamente, são valores mobiliários definidos no inciso IX do art. 2º da Lei Federal nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, sujeitando-se à legislação do mercado de valores mobiliários e, por consequência, à regulamentação emanada da CVM.
Neste momento, a CVM autuou participantes do setor, revogou e suspendeu algumas ofertas que foram entendidas como promovidas de forma irregular, o que resultou em inúmeros pedidos posteriores, à CVM, de dispensa de requisitos e/ou de registro de ofertas de CIC hoteleiro.
Referidos pedidos de dispensa foram submetidos à análise pela área técnica (Gerência e Superintendência de Registro de Títulos e Valores Mobiliários), com subsequente exame pelo órgão colegiado da CVM, que é formado por quatro diretores e pelo diretor presidente da autarquia (“Colegiado”). Após a concessão da dispensa de registro de diversas ofertas de condo-hotéis, o Colegiado emitiu a Deliberação CVM nº 734, de 17 de março de 2015 (“Deliberação CVM nº 734”), que uniformizou os critérios adotados em tais dispensas e estabeleceu os parâmetros preliminares que, quando atendidos, resultavam na concessão da dispensa do registro de CIC hoteleiro pela área técnica, sem necessidade de submissão ao Colegiado.
No início de 2016, a CVM divulgou o edital da audiência pública nº 08/16, que foi debatido e comentado pelos participantes do mercado imobiliário e que resultou, no dia 27 de agosto de 2018, na divulgação da equilibrada Instrução Normativa nº 602 (“Instrução CVM 602”).
Foram muitas as inovações promovidas pela Instrução CVM 602 que captou a essência dos CIC hoteleiros, que são valores mobiliários com particularidades diversas das espécies de valores mobiliários comumente negociadas no mercado brasileiro. Tal fato se deve, entre outros fatores, pela sua dependência direta da velocidade de venda das unidades autônomas do empreendimento hoteleiro e da consequente flutuação do valor do metro quadrado dos imóveis.
A Instrução CVM 602 revogou a Deliberação CVM 734 e esclareceu as principais questões de interesse do setor de incorporação imobiliária de condo-hotéis, especialmente por conta da definição sobre: (i) as características essenciais dos CIC hoteleiros; (ii) as partes ofertantes; (iii) o público alvo dos CIC hoteleiros; (iv) o valor de venda dos CIC hoteleiros durante o prazo da oferta; (v) a obrigatoriedade do registro (como regra geral), com respectivo rito a ser seguido; (vi) hipóteses de dispensa automática do registro em situações especiais; e (vii) critérios para elaboração e atualização dos materiais da oferta, demonstrações financeiras e laudos de avaliação do empreendimento.
Características essenciais dos CIC hoteleiros
O CIC hoteleiro foi definido como o conjunto de instrumentos contratuais ofertados publicamente, que contenha promessa de remuneração vinculada à participação em resultado de empreendimento hoteleiro desenvolvido pelo regime de incorporação e organizado por meio de condomínio edilício, não sendo aplicável, aos condomínios voluntários.
Com tais restrições, os riscos que o investidor incorre, referente ao desenvolvimento do empreendimento, tendem a ser minimizados por conta da obrigação do registro do memorial de incorporação[2]. Ainda, permite que o investidor tenha acesso às regras que serão seguidas pelos demais proprietários e condôminos do empreendimento organizado através do condomínio edilício.
Partes ofertantes
A CVM definiu como ofertantes do CIC hoteleiro a sociedade incorporadora ou qualquer outra pessoa que realize atos de distribuição pública dos referidos valores mobiliários. A inovação do conceito consistiu na exclusão da operadora hoteleira da qualidade de ofertante, uma vez que não realiza esforços de venda; no entanto, dada a sua importância, deverá atestar que considera corretas e verdadeiras as informações prestadas ao público durante a Oferta.
Público alvo da oferta de CIC hoteleiro
Outra inovação por parte da CVM consistiu na ausência de restrição ao público alvo, de forma que qualquer investidor poderá adquirir CIC hoteleiro.
A Deliberação CVM 734 permitia a dispensa de registro das ofertas de CIC hoteleiro que envolvessem esforços de venda (i) de unidades imobiliárias autônomas destinadas a investidores que possuíssem ao menos R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) de patrimônio ou que investissem ao menos R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) na oferta ou (ii) de partes ideais de condomínios gerais destinados exclusivamente a investidores qualificados e, ainda, que possuíssem ao menos R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais) de patrimônio ou investissem o volume mínimo de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) na oferta.
O valor de venda dos CIC hoteleiro
O valor de venda de unidades autônomas de empreendimentos imobiliários não é linear e flutua conforme a demanda do mercado. A CVM, de forma acertada e em linha com as práticas desse mercado, entendeu a necessidade e possibilidade de o preço de venda dos CIC hoteleiro acompanhar tal flutuação.
Assim, a alteração do valor de venda dos CIC hoteleiro, ao contrário da alteração do valor de venda de outro valor mobiliário no decorrer do prazo de distribuição, não configura modificação da oferta e é expressamente permitida. Neste sentido, a CVM manifestou, no âmbito da Audiência Pública, que, em vista das particularidades do mercado de incorporação de condo-hotéis, é compreensível a necessidade de alteração do preço dos contratos, de forma a adequá-lo à realidade do empreendimento.
Exigência do registro da oferta.
Como regra geral, as ofertas públicas de CIC hoteleiro deverão ser submetidas a registro e consequente análise prévia pela CVM. Os prazos de análise são os mesmos previstos na norma geral aplicável às ofertas públicas de títulos e valores mobiliários[3].
A regra antiga (Deliberação CVM 734) previa a dispensa automática de registro, resultando, portanto, na ausência de pagamento de taxa de fiscalização à CVM. Acontece que a CVM realizava a análise dos documentos apresentados quando do pedido de dispensa, solicitando alterações e complementações a tais documentos, sem o recebimento de contrapartidas.
Com a divulgação da Instrução CVM 602 e obrigatoriedade do registro, ficou clara a exigência do pagamento da taxa de fiscalização de 0,64% (sessenta e quatro centésimos por cento) sobre o valor da oferta, cujo valor máximo é de R$ 317.314,36 (trezentos e dezessete mil, trezentos e quatorze reais e trinta e seis centavos) por registro. Tal cobrança foi questionada pelo mercado, sem sucesso, sob a égide de que tal pagamento poderia onerar em demasia a realização das ofertas de CIC hoteleiro e dificultar o desenvolvimento desse mercado.
Importante ressaltar que a distribuição tem início após a concessão do registro da oferta pela CVM e a divulgação do anúncio de início, e tem prazo máximo de 36 (trinta e seis) meses contados da divulgação do anúncio de início, podendo tal prazo ser prorrogado por uma única vez, por igual período. Tal prazo não existia na regulamentação antiga.
Foi dispensada a contratação de instituição financeira para atuar como instituição intermediária líder da oferta, podendo ser realizada e intermediada por corretores de imóveis, sendo certo que o ofertante será responsável pela fiscalização das atividades de tais corretores.
Dispensa automática de registro da oferta
Foi dispensado o registro da oferta pública de distribuição de CIC hoteleiro que resultem em menores riscos aos investidores.
Assim, estão automaticamente dispensados de registro, os CIC hoteleiros que: (i) não ultrapassem, no mesmo ano calendário, a alienação de frações ideais correspondentes a 10 (dez) unidades autônomas por pessoa natural ou jurídica; ou (ii) que venham a ser realizadas após a divulgação das demonstrações financeiras anuais auditadas, em que se tiver reconhecido, pela primeira vez, receita operacional hoteleira, independentemente da quantidade de unidades autônomas ofertadas, e desde que o empreendimento já tenha sido objeto de distribuição pública registrada ou dispensada de registro pela CVM.
Também foi concedida a dispensa de registro à oferta que compreenda a alienação de frações ideais correspondentes a mais de 10 (dez) unidades autônomas, no mesmo ano calendário e seja realizada (i) enquanto estiver em curso a oferta pública registrada promovida pela sociedade incorporadora nos termos da Instrução CVM 602; ou (ii) no período compreendido entre o encerramento de oferta pública, registrada ou dispensada de registro pela CVM, e a divulgação das demonstrações financeiras anuais auditadas, em que se tiver reconhecido, pela primeira vez, receita operacional hoteleira.
Na hipótese prevista na alínea “ii”, do parágrafo acima, o ofertante fica obrigado a (i) comunicar à SRE e divulgar os anúncios de início e encerramento da oferta de distribuição pública na página do empreendimento; (ii) desde o anúncio de início de oferta até o seu encerramento, colocar à disposição do público, na página do empreendimento, o prospecto da oferta, o estudo de viabilidade, os modelos de todos os instrumentos contratuais que compõem o CIC hoteleiro e a declaração emitida pelo ofertante sobre a veracidade das informações prestadas no prospecto e no estudo de viabilidade; (iii) atualizar, anualmente, a partir da divulgação do anúncio de início da oferta até o seu encerramento, o prospecto, estudo de viabilidade e a declaração prestada pelo ofertante; e (iv) preparar qualquer material publicitário em conformidade com a Instrução CVM 602.
Exceto na hipótese de unidades retomadas em função de retratação ou rescisão contratual motivada pelo inadimplemento do adquirente, a sociedade incorporadora não pode valer-se da dispensa automática ora referida antes de decorridos 12 (doze) meses do encerramento de distribuição pública registrada ou dispensada de registro pela CVM.
Critérios para elaboração e atualização dos materiais da oferta, demonstrações financeiras e laudos de avaliação do empreendimento
Em contrapartida à ausência de restrição ao público alvo dos CIC hoteleiros e à possibilidade de flutuação do valor de venda das unidades e/ou das frações das unidades autônomas do empreendimento, o registro da oferta passou a ser obrigatório na maior parte das situações, assim como foram incrementados o volume de informações a ser divulgado, os deveres e obrigações dos ofertantes e a periodicidade de atualização de informações ao público investidor.
O ofertante deverá, entre outras obrigações previstas no art. 16 da Instrução CVM 602, manter o prospecto da oferta, o estudo de viabilidade econômica e financeira do empreendimento e os instrumentos contratuais que compõem o CIC-hoteleiro à disposição do público, na página do empreendimento e atualizar, anualmente a partir do registro da oferta, o prospecto e o estudo de viabilidade.
Com relação aos materiais publicitários, a CVM inovou, uma vez que a sua aprovação prévia ficou a critério do ofertante. Tal material não poderá conter informações diversas ou inconsistentes com as informações do prospecto ou do estudo de viabilidade, sendo certo que o conteúdo da página do empreendimento também é tratado como material publicitário por parte da CVM.
Assim, apesar da ausência de obrigatoriedade de aprovação dos materiais publicitários, é recomendável a submissão das versões iniciais desses, de forma a comprovar a sua respectiva adequação às normas da CVM.
Importante mencionar que foi esclarecido que a sociedade operadora pode organizar-se como sociedade anônima ou sociedade limitada e que caso tal sociedade seja emissora exclusivamente de CIC hoteleiro, será dispensada do registro de emissor de valores mobiliários.
Não obstante, durante a operação do empreendimento hoteleiro, a sociedade operadora deve elaborar e colocar à disposição do público, na página do empreendimento, assim como enviar à CVM: (i) demonstrações financeiras anuais do empreendimento hoteleiro, elaboradas de acordo com a Lei Federal nº 6.404, de 1976, e com as normas contábeis editadas pela CVM, e auditadas por auditor independente registrado na CVM; e (ii) demonstrações financeiras trimestrais do empreendimento hoteleiro, referentes aos 3 (três) primeiros trimestres de cada exercício, acompanhadas de relatório de revisão especial, emitido por auditor independente registrado na CVM; podendo os condôminos dispensar a apresentação de uma ou mais demonstração financeira a partir do terceiro ano após o início do reconhecimento da receita operacional hoteleira[4].
Sem dúvida, a Instrução CVM 602 é um marco do mercado financeiro imobiliário, em constante evolução. Ainda não é possível verificar as consequências que tal regulamentação trouxe ao mercado de condo-hotéis, sendo que, desde a divulgação das novas regras, ainda não foram verificados novos pedidos de registro de oferta pública de CIC hoteleiro[5].
Por outro lado, acreditamos que este mercado tende a se desenvolver, uma vez que o investimento em condo-hotéis é altamente atrativo aos pequenos investidores, que têm interesse no recebimento de receita financeira, mas com lastro imobiliário direto, atendendo ao desejo cultural de uma boa parte do público alvo de “uma escritura com registro em cartório e em nome individual”.